Os mistérios de Gladys e Saedís
Difícil compreender o ser. Mistérios permeiam a existência. Baleias e golfinhos, simpáticos e inteligentes, roubaram minha atenção esta semana. Intrigou-me a sorte de tantas baleias-piloto ao morrerem inexplicavelmente nas águas da Austrália. Quando sofre uma baleia sofremos todos, espécies de um mesmo universo.
As 97 baleias-piloto simplesmente encalharam na praia. Destas, 51 morreram logo. Um exército de especialistas e solidários voluntários enfrentou as gélidas águas para salvar as demais. Levadas para o mar mais profundo, simplesmente quiseram voltar. E sentenciaram a própria morte. Gregárias, como tantas outras espécies, tomaram a decisão em conjunto, ou apenas obedeceram a ordem de uma líder. A atitude às vezes é por instinto, às vezes reflexo coletivo de um pensamento. Outras simplesmente a obediência cega que conduz à fatalidade.
Por que foram tão perto da praia, todas elas, é um mistério. Talvez para se alimentar. Frequentemente os motivos só servem para justificar. As consequências advêm de razões que nem sempre conseguimos explicar.
Mas o que mais intriga é as sobreviventes terem decidido voltar. Estariam solidárias às mortas? Ou queriam o mesmo destino? Teriam elas consciência desse ato que gerou a decisão humana do sacrifício?
Não é a primeira vez que se perpetua um genocídio. Volta e meia morrem em bando, como se morre nas guerras. Há poucos anos outras 500 encontraram a morte naquele que ironicamente leva o nome de Pacífico.
A experiência da vida é sempre uma imprevisível jornada repleta de surpresas. Pesquisadores do Atlântico Norte observam há anos uma orca chamada Saedís. Ela reapareceu no início do ano nas águas da Islândia com um filhote de baleia-piloto, parecendo havê-lo adotado. O inusitado é o fato de que orcas e baleias-piloto não se bicam, muito pelo contrário. Teria sido um sequestro ou uma adoção? Seria o filhote órfão?
Fato é que prevaleceu sobre o ódio das espécies o instinto maternal, e há pesquisador que imagine que Saedís perdera sua própria cria e tenha pretendido compensar com a adoção. Há instintos que se sobrepõem à lógica, para o bem e para o mal.
No universo das baleias há sim muito a se pensar. E são muitas as variedades de ser. As jubarte cantam e as beluga imitam a voz humana, sem precisar de Inteligência Artificial. Todas elas mobilizam inúmeros estudos. Os humanos se espelham nelas. E ao entendê-las, talvez compreendam a si próprios.
Antes porém de tomar conhecimento das baleias-piloto na Austrália, estava lendo o que acontece atualmente com um bando de orcas no Estreito de Gibraltar. Já por cinco centenas de vezes, em bando, atacaram embarcações, tendo levado três delas ao naufrágio. As orcas são predadoras, mas não costumam atacar os humanos. Diferentemente da enorme cachalote branca, de protuberante arcada dentária do Moby Dick, e da baleia que engoliu Gepeto.
Um bando possui algumas características intrínsecas. Uma delas é o efeito manada, o que talvez explique o caso das baleias da Austrália, quando se obedece cegamente a um líder. A vida social requer sempre alguém a se seguir, que organize o convívio, a evolução e a sobrevivência, o que inclui a alimentação. As baleias-piloto, por exemplo, têm na lula seu molusco preferido.
O Estreito de Gibraltar é importante rota de navegação. Liga dois oceanos e aproxima dois continentes. Por que Gladys estaria atormentando tanta gente? Gladys é o nome da orca líder de seu bando – ou sua família. Geralmente ela ataca com seus filhotes, outras com mais guerreiros. Já houve episódio de ataque com quinze animais.
A preferência de Gladys é o leme dos veleiros, contra o qual exerce sua fúria e parece ensinar aos rebentos, que passam a imitá-la. Há quem atribua a atitude a um trauma que Gladys teria sofrido em algum incidente com navegantes. Há quem avente também vingança devido à perda de algum membro da família. O ódio, como o amor, é ingrediente da natureza.
Tudo, porém, fica sempre na esfera da suposição. Nunca há como se ter certeza das atitudes de um ser, que às vezes surpreende. Como Saedís e Gladys. Que a propósito nem baleias são. Há fake news também nesse universo nebuloso onde paira uma crise de identidade. Orcas e baleias-piloto são na verdade da família dos golfinhos. Aqueles bonitinhos e exibidos que nos dão muita alegria e já salvaram alguns humanos. Afinal, na existência das espécies nem tudo gera só mistérios.