Papa-léguas urbanos
O novo século trouxe muita dor de cabeça, quando não a morte, em meio a tanta inovação. Vivemos o despertar para a micromobilidade. Depois do cavalo e da bicicleta, circulamos agora com novos velocípedes, as patinetes elétricas. Verdadeiras papa-léguas do imaginário, com sua audácia e astúcia, correndo do coiote.
Nosso mundo se prepara para os carros que voam, mas enquanto isso precisamos nos organizar na maneira como queremos percorrer as avenidas das nossas cidades e do nosso futuro.
Há uns quatro anos, as ruas foram invadidas na febre das patinetes elétricas, que tal qual o celular, se beneficiam das pequenas células de lítio. Descobrimos uma alternativa aos carros egoístas que atravancam hoje nosso espaço, sem tanto esforço físico, e sem esperar o ônibus e disputar o metrô.
Empresas multinacionais de compartilhamento, que já vinham oferecendo bikes com bateria, saíram espalhando patinetes pelas calçadas das grandes cidades. O Brasil não ficou de fora da nova moda. Mas era o início de um grande conflito urbano.
Não sabíamos – e ainda não aprendemos – a nos comportar com tanta modernidade. Os gestores públicos muito menos e, agora, correm atrás do prejuízo. Há alguns anos, eu caminhava por La Rambla e Paseo de Gracia, em Barcelona, livre, leve e solto, convivendo no mesmo espaço com os ciclistas de pedal. Agora não mais.
Se as magrelas integram cada vez mais nosso cotidiano, as patinetes elétricas, particulares ou self-service, então, agravam cada vez mais a disputa por cada metro quadrado, num momento da vida em que todos temos pressa.
Com a invasão desses velocípedes audazes, o poder público começou a tentar organizar a bagunça. Mas esse trabalho está longe de acabar. São Paulo regulamentou em 2019 a atividade desses papa-léguas espalhados por aí. As big da micromobilidade recolheram seu arsenal. O negócio ficou inviável. Só com a bagunça tinham lucro. Agora uma nova empresa se dispõe a oferecer o serviço e a prefeitura regula a atividade impondo velocidade máxima de 20 km/h e espaço determinado para estacionar, o que às vezes me lembra gansinhos.
Muitas outras cidades brasileiras digerem a nova realidade, que é mundial. Nova Iorque permite essas scooters na região turística do Central Park, em velocidade máxima de 25 km/h e restritas a determinados leitos de circulação.
A ordem mundial hoje é tirar as patinetes, como as bikes, das calçadas. Paris e Lisboa enfrentam neste momento igual esforço para reduzir drasticamente a quantidade de gansinhos elétricos largados por onde caminhamos. Em ambas capitais os prefeitos restringem a frota de 15 mil patinettes na capital francesa e outro tanto de trotinetes lisboetas, para algo em torno da metade. Impõem controle da velocidade limitada a 20 km/h e definem onde podem ser largadas.
Em Lisboa ainda impressiona a algazarra desses papa-léguas pelas calçadas. Mais ainda as que passam esbarrando em nossos braços. Esta semana a Associação Novamente, voltada para a questão de acidentes crânio-encefálicos, divulgou um manifesto. Quer que se obrigue os usuários a usarem capacetes.
Não é para menos. Há o registro de muitos danos e mortes. Segundo o Instituto Nacional de Emergência Médica, no ano passado ocorreram 1.691 acidentes com as trotinetes. Isso dá uma média de 140 acidentes por mês, e além de braços e clavículas, as cabeças parecem ser as preferidas do azar.
É urgente que se estabeleçam planos de mobilidade urbana. O conflito entre modais é crescente. Um cicloativista europeu defende que os maiores se preocupem com os menores. Caminhões cuidem de carros, carros cuidem de motos, bikes e patinetes. E estas cuidem dos pedestres, os mais indefesos e fragilizados no novo cenário urbano.
Muito ainda se vai discutir e regulamentar a curto prazo. Fica, porém, a preocupação com o comportamento. Não basta obrigar. Há de se educar! Foi-se o tempo em que minha pequena bicicleta tinha placa. Criamos ciclovias e ciclofaixas. Ainda não está claro que veículos a propulsão podem ou não percorrer esses corredores.
Se hoje já não se consegue multar tantos infratores de motos e bicicletas, talvez não chegue o dia em que possamos circular em harmonia, com o benefício das inovações que, sem dúvida, podem dar mais qualidade às nossas vidas.O problema é que estamos ganhando asas sem que nos tenham ensinado a voar.