Propósito do existir
“Em algum momento exacerbamos o trabalho, que passou a dar o sentido do existir sem que muitos de nós percebêssemos. Mas agora estamos cansados. E por isso fomos reduzindo a carga. Primeiro lutando por direitos contra regras desumanas, depois pela semana de cinco dias, agora pelo trabalho remoto e a semana de quatro dias. A produção, porém, é atroz, a máquina do consumo se alimenta de suor”
“Eu vim nesta vida a passeio, não a trabalho”, respondeu Patrícia à beira da piscina, para gargalhada geral mas constrangimento de sua dedicada mãe, que lhe pedira para buscar uma coisa qualquer na dispensa. A frase nunca saiu da minha cabeça, tal seu rico simbolismo para explicar tanto infortúnio. Patrícia é nome fictício para poupá-la da condenação de alguns e glória de outros que, mesmo não tendo sua sorte, têm nessa frase mantra desejável de vida.
Patrícia era filha de um homem cujo propósito sempre foi trabalhar, e por tanto trabalhar, alcançou confortável situação para seus filhos, esperando que fossem herdeiros de sua crença no labor. Mas a mãe de Patrícia era a segunda geração de outro bem afortunado no trabalho. E como se diz, a terceira geração vem sempre a passeio. Esse parece ser prenúncio da desgraça.
Lembro disso ao questionar o propósito do existir. Nascí para trabalhar ou me divertir? Até que ponto o esforço diário é o sentido em si da vida? O trabalho seria o caminho para alcançar a felicidade? Em outros momentos das civilizações que nos antecederam o trabalho era apenas meio para simples sobrevivência, acredito eu, ao imaginar alguém caçando e pescando para a prole.
Até que a civilização do consumo exacerbou os sonhos. Estes sim seriam o propósito, condição única dos humanos? As flores não sonham, apenas cumprem o propósito da natureza de embelezar o que vemos e fecundar nossos jardins junto com os pássaros que fazem trilha sonora aos raios de sol com seu alarido.
Em algum momento exacerbamos o trabalho, que passou a dar o sentido do existir sem que muitos de nós percebêssemos. Mas agora estamos cansados. E por isso fomos reduzindo a carga. Primeiro lutando por direitos contra regras desumanas, depois pela semana de cinco dias, agora pelo trabalho remoto e a semana de quatro dias. A produção, porém, é atroz, a máquina do consumo se alimenta de suor.
A Grécia acaba de retomar a semana laboral de seis dias para reverter a tendente queda na produção. A Europa toda passa a se lembrar que vários países estão produzindo menos. Mas por hora não se pensa em voltar a trabalhar mais.
Porém, o sul-africano com espírito de pitonisa, Elon Musk, está profundamente preocupado. Fala em três grandes perigos para a humanidade: a Inteligência Artificial, a crise ambiental e o extermínio do planeta.
Quanto à crise ambiental, Musk aposta na energia limpa e para isso criou a Tesla. Contra o extermínio, passou a investir na viabilidade de morarmos em Marte, e para isso mergulhou em pretensioso projeto de foguete que já subiu dezenas de vezes e pode se transformar em nosso veículo circular interplanetário enquanto ainda pudermos embarcar para um novo mundo.
O mais assustador vaticínio da pitonisa parece ser a ausência do trabalho. Diz que a IA vai acabar com a maioria dos postos, a serem ocupados por robôs. Haverá ganho de produção, barateando o custo de vida de uma massa de desempregados sem renda que dependerão de subvenção estatal para viver. E pergunta Musk: sem o trabalho, qual será o sentido da vida? Qual o propósito?
Costumo encontrar com velhos amigos que ainda trabalham para sobreviver ou para manter o sentido. Alguns costumam dizer: “Não paro de trabalhar porque não saberia o que fazer aposentado”. E penso em suas esposas dando graças a Deus para não terem que aturá-los em casa o dia inteiro.
Outros saberiam sim o que fazer, alguns até já fazem, desde caminhar à beira do mar, ler bons livros, fazer bricolagem ou, admiravelmente, ajudar os outros. Temo, porém, que a maioria da humanidade se sentiria perdida e sua vida lhe pareceria sem sentido.
A IA veio para nos facilitar, em muitos aspectos é bem vinda, mas os robôs, que até agora não sabem sonhar, poderão matar nossos sonhos. E muitos deixarão de ter o trabalho como propósito de vida e terão que encontrar um propósito maior, e talvez essa seja a intenção de quem a tudo criou, pois estarão como as flores e os passarinhos que nos encantam com cores e cantos sem talvez saberem por que o fazem. Mais ou menos como a vida de Patrícia, usufruindo do sol com sua desbravada vida, enquanto restarem os proventos herdados, que lhe permitem levar instagramável existência a passeio.