Reformas portuárias: o passado pode iluminar o futuro
Nenhum evento específico para marcar as efemérides. Nenhum balanço aprofundado do processo que vem transformando o cenário portuário brasileiro desde o final do século passado: inexplicável!
Mesmo em um país com tradição de pouca memória, difícil entender como quase passaram despercebidos os 10 anos de promulgação da Lei nº 12.815/13 (L2) e 30 anos da Lei nº 8.630/93 (L1). Esta, em particular, importante inflexão, baliza e espinha dorsal dos recentes ciclos de reformas portuárias brasileiras.
Recentes? Sim, pois a história não começa nem com a L1 nem com a L2; como muitas vezes se quer fazer crer: muitas iniciativas transformadoras, muitos ciclos de reformas ocorreram no País desde que a família real chegou ao Brasil (1808), e “abriu os portos às nações amigas”.
Em síntese: ao longo dos últimos duzentos anos o Brasil diversificou sua economia (inicialmente meramente agrícola, para incluir setores industriais e de serviços); interiorizou a ocupação do território (essencialmente costeira no alvorecer do Século XIX); aboliu a escravatura e passou do império à república (convivendo com uma democracia sincopada). A população é atualmente cerca de cinquenta vezes maior e a economia, entre as mais dinâmicas do planeta na maior parte do período, cresceu, em média, 3,71% entre 1820-2012 (véspera da L2): 110 vezes só ao longo do Século XX!
O setor portuário, seja para acompanhar, seja para viabilizar essas transformações, passou por sucessivas reformas. Curiosamente todas elas, em geral, com diagnósticos e objetivos similares, ainda que com rótulos distintos; como pode ser constatado nos planos, exposições de motivos, textos legais e discursos. Incluindo-se essas duas últimas. A saber: i) enfrentar gargalos logísticos; ii) viabilizar investimentos; e iii) reduzir custos. Algumas vezes visando, também, novo modelo e nova governança.
Vale observar, também, que não raro lançou-se mão de instrumentos congêneres e, muitas vezes, cíclicos: ora com maior envolvimento do setor público, ora incentivando a participação do setor privado; ora gerando “fundos” públicos para financiar os investimentos, ora incentivando os de risco capitaneados por empresas privadas; ora descentralizando o processo decisório, ora centralizando-o.
Os portos públicos, em particular, passaram por 3 macro-configurações: nasceram privados; foram estatizados em meados do Século XX; e, a partir dos anos 1990, pode-se caracterizá-los como uma PPP: administração pública com operação privada (operadores e arrendatários).
Os ciclos recentes de reformas:
O movimento que gestou o PL-8/91 e, deste, a L1, teve vários protagonistas: líderes setoriais e associativos, parlamentares, ministros e presidentes. Mas, certamente, as chamadas “condições objetivas” para tanto têm uma raiz econômica e outra política: i) a chamada globalização (criando demandas exponenciais sobre os portos e suas capacidades de atendimento) e ii) a redemocratização/processo constituinte (e seus legados de participação e descentralização, do qual a autonomia das administrações portuárias e o CAP deliberativo são filhos legítimos).
Nesses 30 anos a movimentação portuária, agregada, cresceu 3,5 vezes (1.209/341 Mt/ano). Isso representa uma média anual de 4,31%; sendo 5,02% nos 20 primeiros anos (904/341 Mt/ano), e 2,95% nos 10 últimos (1.209/904 Mt/ano).
Ao longo desses períodos, como também nas décadas anteriores, em termos de volumes de carga (t), os TUPs sempre foram majoritários: ou seja, não se trata de um fato ou tendência recente. Mas há curiosidades que contrariam a impressão dominante: segundo estatísticas da ANTAQ, TUPs movimentavam 74,8 % do total em 1992 (contra 25,2% dos portos públicos); relação que caiu (!) para 65,0% X 35,0% em 2012 (universo já 2,65 vezes maior). Por outro lado, essa relação manteve-se praticamente constante nos últimos 10 anos: 65,1% X 34,9%. Surpreso? Confira os dados oficiais. Como explicá-lo?
- i) A estabilidade dos últimos 10 anos, contrariando expectativas, narrativas e discursos, resulta de que o “boom” de autorizações de TUPs (94), no rastro da L2, acabaram não saindo do papel; como registra a “Análise concorrencial: terminais de uso privado vis-à-vis terminais arrendados”, aprovada pelo Acórdão nº 499-2023-ANTAQ, de 20/SET/2023. Para ilustrá-lo, e p.ex, o relator diz no seu voto que “surpreende a representatividade dos investimentos previstos por essas instalações que ainda não iniciaram suas obras” (Item-37): 96% dos R$ 47,05 bilhões! Também que 93% das cargas movimentadas pelos TUPs o foram por aqueles outorgados antes de 2013; ou seja, antes da L2 (Item-23d).
- ii) Já a significativa alteração de participações, entre 1992-2012 (vigente a L1), decorre da metodologia, do recorte estatístico que vem sendo adotado. Estes obliteram o fato de que os arrendamentos são tão privados quanto os TUPs: diferem, apenas, em aspectos regulatórios e no regime de exploração. Tivesse o recorte foco na propriedade e gestão, comprovar-se-ia que 100% das operações portuárias são privadas… e não seria preciso responder à recorrente pergunta da imprensa. Ainda hoje: “quando os portos brasileiros serão privatizados?”
Esses fatos/explicações, por sua vez, questionam duas outras “verdades” que foram se consolidando: i) que o modelo balizado pela L1 era um obstáculo aos investimentos, à expansão portuária (o que influenciou na sua revogação e substituição pela L2); e ii) que o grande gargalo para tanto era/é a “burocracia” dos portos públicos: bastaria substituir arrendamentos por autorizações (TUPs) para que investimentos fossem destravados, surgissem novos terminais, a concorrência e movimentação aumentassem, etc. Alguma semelhança com as “ferrovias de papel”?
Cenas do próximo capítulo:
Pelo lado da oferta, há três iniciativas em curso: i) A “Comissão de Juristas” da Câmara dos Deputados, formada quando as árvores do Natal de 2023 já piscavam; ii) O “Programa Navegue Simples”; e iii) O processo de revisão do PNL; agora para o horizonte de 2050.
Já pelo lado da demanda, o cenário portuário atual é bem distinto daquele do início dos anos 1990 (pós-constituinte e véspera do PL-8 e L1). Numa “apertada síntese” (jargão dos operadores do direito): i) Naquela oportunidade o foco das reformas foi o longo curso (exportação/importação para fazer face à globalização), hoje também cabotagem (para produção e abastecimento interno); ii) Lá o foco foi o cais (embarque, desembarque e armazenagem); hoje também acessos (dificuldade de chegar/sair): rodo, ferro e hidro. iii) Aumento de capacidade: la foco na mecanização e automação, hoje também economia 4.0 e requalificação/ampliação de ativos; iv) Lá “avulsificação” da capatazia, hoje vinculação dos TPAs; v) Lá redução do contingente, hoje qualificação/requalificação da mão-de-obra; vi) Lá empresários buscavam atuar no porto organizado (como operadores e/ou arrendatários), hoje, se possivel, querem estar fora (opção pelos TUPs).
Outras questões não estavam nem postas; p.ex: complexo portuário (surgido ante o contorcionismo das Poligonais; e a demandar governança mais definida); relação porto-cidade (vide “Governança Portuária”, da Espo); restrições e licenciamentos ambientais (a principal norma surgiu quatro anos depois); Agenda-2030; regulação (a Antaq foi criada 9 anos mais tarde), mormente com a pulverização de hoje (TCU, Cade, MP, justiça).
Seriam as três iniciativas em marcha adequadas, eficazes e suficientes para enfrentar os gargalos, os desafios da atual agenda? A ver! O certo é que, talvez, o passado possa iluminar o futuro.