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Luiz Dias Guimarães

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Refúgio em cantos perdidos

Refugiar-se às vezes é preciso, não só no limiar do ano. Há momentos na vida em que necessitamos nos esconder até de nós mesmos, no sono ou na embriaguez. Refugiar pode ser mergulhar na lembrança, ou fugir dela, numa reza ou até numa ilusão. Frequentemente  fugimos idealizando um caminho ou um destino. Ah, que vontade de ir por aí num carro de boi em estrada de terra!

Algumas imagens me encantam quando busco refúgios. De preferência os mais primitivos e distantes, mesmo que o longe seja aqui.

Há em Portugal muitos moinhos abandonados. Talvez nem tantos quanto na região de Castilla, na Espanha, onde Cervantes, refugiado em Quixote, deparou-se um dia com muitos deles e se pôs a digladiar.

Os moinhos hoje são buscados para moradia, como também velhas estações de trem. Encanta-me a ideia de habitar um moinho de vento. Trataria de reconstruir suas pás de pano roto só para sentir a brisa de dia e a ventania na madrugada.

Há tempos moinhos serviam para moer o trigo, movimentar a água ou gerar energia. Surgiram há 4 mil anos na China. É típico dos moinhos existirem nas alturas, e isso me garantiria o som e o trepidar do vento.

Mas confesso preferir viver num farol. Daquele, o mais distante, debruçado na ponta do despenhadeiro que flerta com o mar e compartilha o céu com as gaivotas.

Há sutis diferenças entre moinhos e faróis. Moinhos parece obrigarem a extenuante trabalho, o que não me permitiria sonhar.

Ao passo que o farol, esse sim, me encanta, pois só piscaria aos navegantes. E de resto me deixaria ensimesmado a sentir o sentido da vida e o prazer das águas de remanso, ou as ondas tormentosas que jamais romperiam meus sonhos e minhas ilusões.

Na verdade há dois planos na humana existência. O da concretude da rotina, das obrigações, da sobrevivência e dos problemas que nunca faltam. E o plano da poesia, da quietude da alma e do esplendor dos dias.

Poucos podem restringir seus momentos nos moinhos pelo tempo suficiente para manipular o trigo, sorver a água e recarregar a energia do corpo. E aí se refugiarem nos belos faróis que não só inspiram, mas também silenciosamente orientam os navegantes para os perigos de costas rochosas. Onde existem alguns ferozes moinhos que aos quais sucumbiu um dia aquele encantado guerreiro de lança afiada ao enfrentar tantos moinhos piores que dragão.

Penso também no refúgio em uma velha estação de trem. Elas ensinam que não é a pressa que leva ao trem, tampouco assegura o destino. Hoje são heróicas plataformas perdidas no tempo mas que, ao menos em Portugal, ainda se reconhece sua importância. Em alguns lugares o passado não morre.

É, talvez eu pudesse viver numa dessas estações. Ficaria eu na gare vendo o tempo passar na velocidade de um comboio a vapor, sem que este conduzisse algo ou alguém, pois não mais haveria nem trem nem ninguém para embarcar.

Então, findo o êxtase da minha fuga, me depararia com o imenso vazio que tomaria o espaço do meu desejado refúgio na velha estação, ou no velho moinho e mesmo no ancestral farol. Não haveria gente, nem trem, nem trigo, gaivotas ou vento. Melhor me serviriam se ficassem eles na minha efêmera fantasia de ir por aí.

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