Tecnologia, Santos e Brasil
Ao longo da história, o misticismo foi usado para tentar explicar o que a ciência, entendida como capacidade analítica do ser humano, não conseguia entender e sintetizar. Isso valia – e ainda vale – para reduzir a ansiedade, a dor ou como instrumento de dominação.
A humanidade evoluiu pela superação dos limites impostos pelos que detinham o poder, mas também pelos que desejavam mantê-lo. E a tecnologia sempre esteve associada a essas rupturas de paradigmas.
Quem assistiu ao menos uma vez “2001 – Uma odisseia no espaço” (EUA, 1968), deve lembrar de uma cena particularmente emblemática: a do osso entendido como ferramenta, que quando lançado ao ar, numa transação de cena brilhante, é substituído por uma estação espacial de formato análogo.
Essa ligação entre a pré-história e a contemporaneidade demonstra que a ciência e o misticismo são os grandes motores da evolução humana. Creio que a comparação com motores é coerente, pois eles também dispõem de freios e precisam de ajustes, além de aperfeiçoamentos.
Ao longo da história, o misticismo foi usado para tentar explicar o que a ciência, entendida como capacidade analítica do ser humano, não conseguia entender e sintetizar. Isso valia – e ainda vale – para reduzir a ansiedade, a dor ou como instrumento de dominação.
A humanidade evoluiu pela superação dos limites impostos pelos que detinham o poder, mas também pelos que desejavam mantê-lo. E a tecnologia sempre esteve associada a essas rupturas de paradigmas.
A evolução tecnológica tanto fascina como amedronta!
A quem ela fascina, tudo o que é novo em pouco tempo será incorporado ao cotidiano, já à espera da próxima novidade. Já quanto aos amedrontados, eles resistirão tanto quanto possível, muito em função de preconceitos ou da incapacidade de se adaptar.
Existem denominações religiosas que rejeitam qualquer tecnologia moderna, preferindo – e obrigando seus descendentes – a viverem como se estivessem no século XIX, esquecendo que a era agrícola também foi uma revolução. Algumas tribos indígenas ainda vivem como seus antepassados caçadores-coletores, migrando sazonalmente, o que tende a ser considerado ecologicamente correto, se considerarmos que a população mundial fosse limitada, o que esbarra em questões tão complexas quanto polêmicas.
Sim, consta que a agricultura foi a primeira revolução da humanidade, pois a partir dela o ser humano abandonou o nomadismo, as primeiras cidades surgiram, e com elas novas necessidades e especialidades. No entanto, antes disso já haviam sido criadas as primeiras ferramentas, instrumentos necessários para adaptar o meio ambiente às necessidades humanas. Ainda antes delas, a manipulação do fogo foi basilar.
Durante milênios a produção foi basicamente braçal, mas acompanhada de importantes inovações tecnológicas, mesmo que empíricas: a roda, o uso de palha para produção de tijolos de adobe, fornos a lenha, moinhos de vento… Também esteve associada ao domínio da transformação de metais, inclusive para a produção de armas.
Assim, as revoluções tecnológicas ocorrem desde a Pré-História, refletindo e pontuando a evolução da humanidade em todos os seus aspectos.
A considerada Primeira Revolução Industrial (1760-1850), a partir da segunda metade do século XVIII, teve na máquina a vapor sua fundamental inovação tecnológica. Ela não acabou com o artesanato, que também passou a utilizar dos novos produtos tecnológicos. A arte é um exemplo. As seis artes primordiais: Pintura, Escultura, Música, Literatura, Dança e Arquitetura, mantêm técnicas antigas, como as das pinturas rupestres e das danças rituais, como usam os mais modernos recursos digitais. Talvez as artes, por sua natureza disruptiva, sejam bons exemplos de como a tecnologia pode ser apropriada, sem abandonar técnicas e conceitos históricos. O cinema, a Sétima Arte, sintetiza essa percepção.
A essa primeira revolução, seguiram-se outras:
A Segunda Revolução Industrial (1850-1900) foi caracterizada por várias descobertas científicas, pelo domínio da eletricidade e invenções a ela associadas, por novos meios de comunicação, remotos; e por avanços na Medicina. A pesquisa científica, como indutora, a Engenharia, com suas múltiplas especialidades, como provedora de soluções práticas para os vários setores da sociedade, assumiram um protagonismo definitivo.
Já a Terceira Revolução Industrial (1950-1980), o protagonismo da ciência e da tecnologia só aumentou, sobretudo a partir na criação dos computadores e internet. A engenharia genética e a biotecnologia também passaram a ocupar lugar de destaque perene. O mesmo vale para novas fontes de geração de energia. O início das viagens espaciais também caracterizaram esse período.
A Quarta Revolução Industrial, também conhecida como Indústria 4.0, trouxe a popularização da internet, da robótica e da Inteligência Artificial, que não são necessariamente inovações, mas evoluções, baseadas no aprimoramento, otimização e integração do já existente.
Consta que o momento atual configura uma Sociedade Digital, que coloca o ser humano como parte de um ecossistema de utilizadores ligados e dependentes das tecnologias de informação e comunicação.
As inovações estão cada vez mais disponíveis e acessíveis, mas nem sempre os seres humanos estão preparados para utilizá-las de forma efetiva e coletivamente úteis. Arrisca-se ter tecnologia pela tecnologia, como objeto de consumo e descarte.
No caso específico da robótica e da automação industrial, a inovação tecnológica sempre gerou insegurança ao longo da história. No entanto, cada uma das revoluções industriais teve em comum a descontinuidade de certas funções e o surgimento de novas, ou seja, sempre afetou como o ser humano era considerado no processo produtivo. Por muito tempo, ele foi considerado como apenas uma engrenagem do sistema, tão descartável como uma peça fora de padrão.
Taylorismo, fordismo, toyotismo marcaram tanto evoluções como retrocessos. O filme “Tempos Modernos” (EUA, 1936), exemplifica “poeticamente” a desumanização do ser humano tratado como máquina, e de como isso pode afetar sua humanidade.
A automação industrial veio embasada na mesma argumentação da computação digital: liberar o ser humano de funções repetitivas e cansativas, para ocupá-lo com atividades mais nobres.
Autores de ficção científica nos deslumbraram com as possibilidades dessa nova era, mas também nos amedrontaram com suas possíveis consequências, sobretudo no âmbito da inteligência artificial.
Recentemente, assisti uma apresentação de Gil Giardelli – que poderia acrescentar um terceiro “G”, de genial, em sua denominação -, em que ele abordou esse tema.
Giardelli ponderou que o termo “Inteligência Artificial”, cunhado na década de 1950 – lembro que um dos brinquedos famosos de minha infância era o “Cérebro Eletrônico” – era inadequado. Justificou que das seis inteligências atualmente identificadas: visual-espacial, linguística, matemática, emocional, musical e corporal-cinestésica (alguns autores acrescentam três: naturalista, espacial e existencialista, ou seja, tem inteligência para todo mundo), a capacidade de emulação dos computadores se restringe à repetição do que o ser humano faz.
Por essa ótica, permanece o conceito original, de que a computação e, mais especificamente, a robótica substitui o ser humano em tarefas repetitivas, que potencializam erros sistemáticos. E quanto maior a sofisticação e retroalimentação dos algoritmos, melhor será seu desempenho em tarefas repetitivas. Porém, dificilmente ele assumirá funções criativas, ou que desconsiderem as Três Leis da Robótica, de Isaac Asimov. Será?
Giardelli mostrou um pouco do que já deixou de ser ficção científica há muito tempo: transporte autônomo, assistentes digitais, etc. Alguns deles já estão presentes em nosso cotidiano, enquanto outros parecem de outro plano ou planeta, vários deles da China. Asseverou que há muita coisa em desenvolvimento.
Lembrei de uma frase de Arthur C. Clarke (1917-2008): “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Na Idade Média e, atualmente, ainda em culturas pouco evoluídas, os autores dessas “magias tecnológicas” seriam queimados em praça pública.
Também recordei da história contada por um amigo:
Jean Paul Jacob (1937-2019), pesquisador brasileiro considerado um “guru” do mundo digital, foi questionado, num evento em que palestrou, sobre a viabilidade do teletransporte. Ele teria respondido que existem pesquisas em andamento, em vários âmbitos da ciência, que os simples mortais sequer conseguiriam imaginar. Quando alguma delas vêm a público, ou entre em discussões sobre ética, provavelmente seus experimentos e protótipos já existem, de forma velada, às vezes beneficiando apenas quem os financia.
Pensei na engenharia genética, clonagem…
Jacob, voltando à pergunta formulada, respondeu que já havia experimentos com o teletransporte de átomos.
Fisicamente, creio que isso é bastante viável, mas e quanto à alma? Seria possível transplantar almas de um corpo físico para outro, ou ter duas, ou mais almas num mesmo indivíduo? Bem, talvez isso explicasse possessões, múltiplas personalidades… Perdão pela “viagem na batatinha”!
Continuando a história contada por meu amigo, Jacob prosseguiu afirmando que a tecnologia vinha evoluindo cada vez mais, mas que, na época, havia muito risco de sua aplicação ao teletransporte de seres vivos. Exemplificou essa percepção sugerindo o início do processo de teletransporte, subitamente interrompido pela mensagem: “Este programa realizou uma operação ilegal e será fechado”…
A série “Jornada nas Estrelas” original tinha o teletransporte como um de seus principais elementos tecnológicos. Num dos episódios, um defeito no sistema fez um tripulante ter seu físico totalmente desfigurado, a ponto de decidirem dispersá-lo no espaço para evitar o sofrimento, demonstrando que o tema também tem aspectos éticos a serem considerados.
Bem, vamos usar o “Fio de Ariadne” para voltar ao objetivo efetivo deste texto.
A robótica e mecatrônica – denominações diferentes de conceitos que se fundem – estão presentes em nosso cotidiano, em maior ou menor escala, também dependendo da região ou país.
Mesmo que indiretamente, o que usamos atualmente foi majoritariamente produzido por robôs, em alguma fábrica do mundo, e se tornou financeiramente viável pela agilidade, qualidade e produtividade de suas linhas de montagem.
Já há avaliações que qualificam países pela quantidade de robôs per capita!
De fato, isso pressupõe nível de desenvolvimento tecnológico, que tem muito a ver com poder geoeconômico. As principais potências do mundo são extremamente tecnológicas, e investem pesado em tecnologias, como instrumentos de dominação.
Nesse cenário, entre fascinante e assustador, onde o Brasil deve se posicionar: dominador, dominado ou autossuficiente?
Existem ao menos dois exemplos mundiais de países que saíram da “pré-história industrial” para, em poucas décadas, assumirem protagonismo na produção industrial: China e Coreia do Sul.
Eles passaram por processos similares, que incluíram: importação de produtos industrializados, cópias (engenharia reversa), transferência de tecnologia, pesquisa científica (produção de conhecimento) e, finalmente, registro de patentes, tornando-se desenvolvedores de tecnologias inovadoras, de alto valor agregado, exportáveis em escala mundial.
O Brasil poderia seguir esse caminho?
Mais uma vez mencionando China e Coreia do Sul, os chineses conseguiram isso num regime de partido único, enquanto os coreanos o lograram numa democracia.
O segundo caminho é viável, portanto, mas depende de uma mudança cultural, que obrigatoriamente exigirá uma radical mudança no modelo atual do sistema de ensino, além de importantes alterações na legislação vigente. Isso só será possível quando o planejamento estratégico superar interesses político-partidários e disputas ideológicas.
O caminho pode ser similar ao desses países asiáticos. De certa forma, já temos esse tipo de iniciativa no Brasil, sobretudo na área militar. Porém, isso precisa ser incorporado pelo setor industrial, com suporte de universidades, institutos de pesquisa e parques tecnológicos.
A cidade de Santos tem um perfil propício para ser um polo de desenvolvimento tecnológico, que inclui uma ampla rede de universidades e escolas técnicas, inclusive na área de mecatrônica; a Fundação Parque Tecnológico de Santos; o Porto de Santos, principal complexo portuário do Brasil; e a aptidão para sediar uma Zona de Processamento de Exportação. Esse perfil se estende para outras cidades da Região Metropolitana da Baixada Santista, com destaque para Guarujá, que brevemente sediará o aeroporto regional.
Considerando esse conjunto de fatores, Santos tem potencial para sediar produção industrial de robôs de vários tipos, incluindo “drones” aéreos e subaquáticos, tanto para o mercado interno, como para exportação, agregando valor, produzindo com baixíssimo impacto ambiental, formando e retendo inteligências, e gerando empregos altamente qualificados e bem remunerados.
O Brasil seguramente continuará a exportar “commodities”, antigas e novas, como o “hidrogênio verde”, para atender demandas de países desenvolvidos. Mas não pode aceitar a continuidade de sua dependência tecnológica de países que fizeram opção, desde sempre ou recentemente, pelo investimento em educação de qualidade e pesquisa científica objetiva como meios de assegurar seu desenvolvimento socioeconômico e protagonismo mundial.