Vento que não mais haverá
“Mas parece que teremos em breve mais um novo normal: grandes embarcações circulando pelos oceanos com pouca, muito pouca tripulação. Esse é o desafio da startup, líder no campo da navegação autônoma e que já opera na Bélgica. Trabalha agora no projeto de tráfego marítimo com controle à distância, para teste no Mar Báltico”
A vida que se prenuncia não terá vento. Ah, o vento, companhia da vida. Se em demasia, incomoda. Às vezes muda catastroficamente o rumo de terras e de embarcações aflitas para aportar. Individualmente desfaz penteado, ergue saias sem pudor e até alvoroça a rinite. Mas alimenta os sonhos feito pipa. Não é pouca coisa empinar uma pipa, muito menos alimentar um sonho. Especialmente aos navegantes.
Por isso chamou-me a atenção comentário de um velho marujo, Patrick Hertoge, que passou 30 anos dos 58 de idade navegando com seu próprio navio. O experimentado capitão largou seu barco para encarar o desafio de um projeto da startup belga Seafar: construir navios conduzidos remotamente, sem comandante a bordo.
Entusiasmado com o projeto, o velho marujo disse à AFP, conforme publicação da Isto É, que grande parte do trabalho de um capitão de uma embarcação é o mesmo em terra como a bordo. “A única coisa que falta é o vento”.
Mas como? Navegar sem sentir o frescor da brisa ou a tenacidade do ar que projeta desafiadores vagalhões? Na prática pode ser, afinal a presença do capitão não é garantia contra desastres, como a destruição da ponte de Baltimore e o naufrágio há poucos anos de um cruzeiro nos mares da Itália, quando foi a pique no momento em que o capitão italiano estaria entretido com a amante moldava que estava a bordo.
Mas parece que teremos em breve mais um novo normal: grandes embarcações circulando pelos oceanos com pouca, muito pouca tripulação. Esse é o desafio da startup, líder no campo da navegação autônoma e que já opera na Bélgica. Trabalha agora no projeto de tráfego marítimo com controle à distância, para teste no Mar Báltico.
A Seafar enfrenta a tarefa para a principal companhia de transporte fluvial na Europa, a alemã HGK Shipping, com uma frota de 350 embarcações. A ideia é aos poucos substituir os capitães e auxiliares a bordo por sensores, câmeras e radar. E operadores estariam à distância em centros de controle.
Ousada e temerária tarefa, penso eu, não muito afeito à tecnologia que tira cada vez mais o trabalho humano, o que certamente reduzirá custos aos armadores. Steffen Bauer, dirigente da HGK, usa argumentos que me parece conterem alguma dose de cinismo: “Se não fizermos nada, perderemos 30% de nossos marinheiros até 2030”, pois muitos estarão aposentados. Ele não aventa a possibilidade natural de repor a mão de obra com jovens qualificados, e sentencia: “A única solução para sobreviver como indústria”.
Essas são questões de gestão empresarial sobre as quais não me atrevo opinar, restringindo-me à perplexidade desse novo tempo. O lado bom, como lembrou o velho marujo Hertoge, é que a bordo fica-se atento 24 horas, enquanto num centro de operações a jornada é de apenas 8 horas, após as quais pode-se refestelar em casa e namorar sem o risco do trepidar de um iceberg, ponte ou monturo submerso.
Pelo visto então o romantismo ficará restrito apenas às paredes do lar. E não mais ao convés, de onde brotaram lendárias histórias e inebriantes fantasias que alimentaram tantas aventuras. E de onde se podia gritar “terra à vista” que o vento tratava de fazer ecoar aos ouvidos e corações de quem estivesse a bordo ou em terra, enquanto lendários capitães singravam as águas entre espuma, sonhos e esperança.