Voo do porto, sem caveira de burro ou capivara
Voei longe. Pensei nos voos que dei e nas caveiras de burro. Não acredito nelas, mas ‘que las hay, las hay’. Será mesmo? Meu País está acostumado com os solavancos pra frente, pra trás. Por exemplo, recentemente, no evento de lançamento do Norte Export 2023, lembraram que a anunciada construção de uma rodovia era, na verdade, a reconstrução, pois ela já existiu em outros tempos. Como nossas ferrovias, triste lembrar.
O Brasil é assim, feito de solavancos de ônibus na hora do rush, pra frente e pra trás. Já inventaram bateria eterna, no frisson dos novos tempos contra o carbono. E o carro que voa não é mais novidade. Mas o principal porto do Hemisfério Sul ainda não conversa com a intermodalidade como precisa. O governo atual corre na questão dos acessos ferroviários. Nos rodoviários, ainda deixa algo a desejar, quem desce a Serra do Mar que o diga.
Mas a grande ironia é que, nesse conceito de integrar os meios, o aéreo parece ter uma caveira de burro, que não creio e não espero, apesar dos solavancos do rush.
Inaugurei minha vida aérea aos nove anos, em 1961, quando vim do Rio para Santos por avião, acompanhando meu irmão recém-operado que, de tanto gesso, mais parecia uma forquilha de estilingue a ocupar quatro assentos deitados. Na linha da Cruzeiro do Sul, que partia do Santos Dumont até a Base Aérea de Santos, no Guarujá.
Triste estreia. Com nove anos, tomei adrenalina na veia. Após 25 minutos de voo, retornamos porque um motor estava pipocando. Não sei se um Douglas DC-3 ou um Convair 340. Espero que o primeiro, porque o segundo, dois anos depois, pegou fogo no motor, caiu e morreram 37 passageiros.
Retornei ao Rio, consertaram a aeronave e embarcamos na mesma por imposição de meu heroico irmão, dando uma lição de coragem e otimismo aos 11 anos, vítima da pólio em 52, quando nasci e Sabin ainda apresentava sua vacina ao mundo.
Percebeu? Em 1961, havia uma linha aérea Santos-Rio, como havia uma linha férrea Santos-São Paulo. Graças ao Barão de Mauá, esse sim, um visionário que, apesar de ter morrido falido, foi impulsionador da indústria brasileira. Naquele tempo não havia e-mail.
Ainda bem, porque ele embarcou em Santos rumo a Londres, fechou negócio e, dois anos depois, o porto recebeu um navio com uma fábrica inglesa completa para pujança de São Paulo.
Solavancos à parte, já sofri muitos, no ar e na terra. Como todo mundo. Meus maiores sustos foram quando o presidente Geisel inaugurou a usina de Promissão. Retornávamos num Electra e a turbulência fez Marília Gabriela, eu e algumas dezenas de outros jornalistas temermos se teríamos a chance de dar a notícia. Ou quando rumo à Itália, acordei no meio do Atlântico, esticado no chão, com a comissária dizendo ao interfone ‘comandante, tem um homem morrendo aqui’.
Na década de 80, embarquei na Base Aérea em linha regular da Rio-Sul para o Rio. A essa altura, já estava bem mais acostumado com as estripolias nas nuvens e aterrissamos tranquilos.
Ainda bem que era um Cessna, ou um Fokker, sei lá. Melhor que um Bandeirante, que, na década de 70, eu usava para ir semanalmente de São Paulo a Ribeirão Preto para lecionar e, quando o copiloto, muito prestimoso, caminhava agachado para me servir um café de garrafa térmica, espalhava o café pela cara de todo mundo na hora da turbulência. Ribeirão Preto e muitas outras cidades Brasil adentro já dispunham de bom aeroporto.
Percebe que o maior porto do Hemisfério Sul tinha um aeroporto ao menos para passageiros, em outros tempos? Pois é, espero que não haja caveira de burro além dos solavancos tradicionais brasileiros.
Recentemente, em 2014, foi graças ao aeroporto da Base Aérea que pude aterrissar com um jatinho fretado conduzindo os diretores da Federação Mexicana de Futebol para conhecerem Santos. E deu certo. Conseguimos sediá-los, e também os costarriquenhos, para a Copa do Mundo, com auxílio de helicópteros de empresas locais, apesar de nossas pistas não terem o PCN necessário para grandes aeronaves. PCN é a classificação do nível das pistas que permite, ou não, a aterragem de grandes aeronaves. E não permitia.
Acabamos recebendo as delegações sem poderem usar a Base Aérea de Santos para o ir-e-vir dos jogos classificatórios. E em alguns momentos, tivemos até que improvisar uma ponte aérea com helicópteros até Guarulhos e Congonhas partindo do heliponto da MSC.
Quando estudamos a História, vemos que os grandes empreendimentos demoraram a sair do papel. Mas haja papel. Há muito se trabalha para transformar a Base Aérea num aeroporto civil metropolitano. E a Prefeitura de Guarujá se mostra muito empenhada para bem do turismo. Tá certo que a localização geográfica não é lá essas coisas, no leito da Serra do Mar. Haja vista o acidente fatal com o Cessna que conduzia, há oito anos, o presidenciável Eduardo Campos para a região.
A Baixada Santista é exemplo de quem vive dos solavancos históricos como a questão do túnel Santos-Guarujá. Que ironia! Em Santos nasceu Bartolomeu de Gusmão, o Padre Voador, que criou o aeróstato e permitiu que eu vivenciasse tanta adrenalina. Mas foi aqui também, no Guarujá, que Santos Dumont encerrou sua vida. Moral da história: o maior porto do Hemisfério Sul tem tudo a ver, historicamente, com a aviação.
Agora adia-se o início de operações em Guarujá por conta de uma capivara encontrada pela Cetesb na região da Base Aérea. Sem dúvida o impacto do empreendimento na fauna local deve ser considerado e respeitado. Mas isso me leva a desconfiar que lá não há uma caveira de burro, mas sim uma caveira de capivara, ancestral da simpática encontrada viva no local.
Que não demore muito mais para saírem do papel o Aeroporto Metropolitano, na Base Aérea, e o aeródromo do Complexo Logístico Andaraguá, em Praia Grande. Afinal, não creio em caveira de burro, nem tampouco de capivara. A desestatização do Porto de Santos está para acontecer e precisa chegar chegando neste novo e admirável mundo novo da multimodalidade. E eu preciso ter melhores lembranças sem medo de cabeças enterradas por aí.