Daria Chestina no terminal portuário onde trabalhava, na cidade de Mykolaiv, na Ucrânia (crédito: Arquivo Pessoal)
Internacional
“Um dia abraçarei minha Ucrânia”
Ucrânia, madrugada de 24 de fevereiro de 2022. O que era apenas uma questão de tempo havia se consolidado. Tropas russas abriram fogo sobre o país e a guerra foi deflagrada. Para a especialista ucraniana em comércio internacional de grãos, Daria Chestina, de 30 anos, que estava com a filha Varvara, de 8 anos, na cidade portuária de Odessa, o medo tornou-se o seu maior aliado.
Daria não levou mais do que alguns segundos para decidir partir. Pensava em Varvara, em sua segurança, em uma vida toda pela frente, agora sob risco iminente. Assombrada pelas atrocidades às quais as mulheres podem ser submetidas em um país à mercê de um conflito armado, Daria iniciou, naquele momento, o êxodo que culminou em sua vinda para o Brasil.
A coragem para atravessar regiões sob ataque de bombas foi forjada oito anos antes. Em 2014, a ocupação russa que resultou na anexação da Crimeia, já havia obrigado Daria a deixar sua cidade natal, Luhansk, com a filha nos braços. Varvara era um bebê de apenas oito meses. Mãe e filha chegaram a se abrigar no banheiro para se proteger dos tiros. Em seguida, Daria mudou-se para a cidade de Mykolaiv, onde iniciou sua carreira no setor portuário. Três semanas após o início da guerra, com a ajuda de uma equipe do terminal portuário Nika-Tera e sob escolta policial, Daria e sua filha partiram de Mykolaiv para Odessa, o quarto maior município do país. Mas, ela estava decidida a deixar a Ucrânia.
Inicialmente, o destino escolhido foi a Polônia, de onde seguiria para a Finlândia. A viagem de ônibus até o país vizinho levou 54 horas. Já instalada em solo polonês, Daria decidiu migrar para o Brasil, onde sua família tinha amigos em Curitiba, no Paraná. Ela chegou ao Brasil com sua filha Varvara e sua irmã Mariia em 24 de março. A sua mãe, Svetlana, chegou ao país há algumas semanas, mas o seu pai, Oleg Chestin, permanece em Luhansk.
Embora seja especialista em Direito marítimo e aduaneiro, é atuando diretamente com comércio exterior voltado ao agronegócio que Daria constrói sua carreira no setor. Mercado este que também proporcionou a ela um recomeço profissional em Curitiba, a mais de 10,5 mil quilômetros de distância de casa.
Daria e sua família trilharam o caminho feito por centenas de compatriotas, que começaram a migrar para o Brasil no final do século XIX, e se concentraram em grande parte no Paraná. Em Curitiba, por exemplo, os primeiros imigrantes ucranianos chegaram em 1891, onde a cultura eslava oriental tem forte influência. A cidade festeja anualmente “O Dia Nacional da Comunidade Ucraniana no Brasil” em 24 de agosto, data em que é celebrada a Independência da Ucrânia após a dissolução da União Soviética, em 1991. As festividades ocorrem tradicionalmente no Memorial Ucraniano do Parque Tingui, na capital paranaense.
Em entrevista exclusiva ao jornal BE News, Daria conta a sua história, compartilha os seus sentimentos e sua esperança em dias melhores para a Ucrânia e seu povo. Sobrevivente de dois conflitos armados, Daria nos deixa como lição que resistir, não sucumbir à dor e recomeçar a vida com ânimo e força é a melhor arma contra os horrores da guerra.
A sua cidade foi atacada por tropas russas?
Esta é a segunda guerra. Em 2014, minha cidade, Luhansk, foi ocupada por tropas russas. Eu e minha filha de oito meses dormimos no banheiro porque era o lugar seguro, onde estaríamos protegidas de tiros. Depois disso, nos mudamos para o sul da Ucrânia, em Mykolaiv, onde iniciei minha carreira portuária. Em 24 de fevereiro deste ano, quando a Rússia iniciou a guerra contra todo o território ucraniano, minha cidade não foi ocupada. Ela defendeu heroicamente o sul da Ucrânia. Então, a Rússia passou a lançar cerca de dez mísseis contra a nossa cidade todos os dias. Em Mykolaiv, durante três semanas após o início da guerra, vivíamos em abrigo. Em um desses bombardeios, uma bomba destruiu a casa da minha mãe, que sobreviveu porque estava no subsolo. Graças a Deus, ela veio para o Brasil há algumas semanas e já está em segurança conosco.
Como foram os dias após o início da invasão russa e como você conseguiu sair da Ucrânia?
Minha filha costumava pensar que o abrigo era o lugar mais seguro que poderia existir em um mundo em guerra. Um dia, tropas russas romperam a defesa com os seus tanques e ocuparam nossa cidade. Neste momento, eu imaginei que coisas nojentas poderiam fazer com nossas mulheres, crianças, homens… E que, nesse caso, eu não seria capaz de proteger a mim e à minha filha. Felizmente, o exército ucraniano destruiu esses tanques. Mas esta situação me forçou a agir imediatamente e decidi que tinha que tirar minha filha da Ucrânia o mais rápido possível. Nika-Tera Port (terminal portuário em Mykolaiv) me ajudou e, com escolta de policiais, em comboio, nos mudamos de Mykolaiv para Odessa, onde a situação era muito melhor. Mas eu não planejava ficar lá, meu plano era mudar para a Polônia e depois para a Finlândia. Durante a nossa rota, ocorreu um bombardeio próximo à nossa cidade. Tudo o que nós, mães, podíamos fazer era cobrir nossos filhos como os nossos corpos e orar. Felizmente, estamos vivas.
Como se sentiu ao ter que deixar o seu país por causa da guerra?
Esta é a nossa segunda partida forçada devido à guerra. Em 2014, algo mudou dentro de mim e eu nunca mais me senti totalmente segura. No dia 24 de fevereiro, às 5h, toda a Ucrânia acordou por causa de explosões. Desde os primeiros segundos percebi que a guerra estava começando. Acordei minha filha e arrumei nossa mala. Eu sabia que, desta vez, não nos mudaríamos apenas para outra cidade, mas para outro país. Encaminhei minha filha a um lugar seguro e fui ao terminal. Eu tinha duas barcaças com milho e precisava escondê-las em algum lugar. Quando saí do país, tentei não pensar na dor que estava dentro de mim porque, antes de tudo, eu tinha que ser forte para nos proteger, minha filha e eu. Quando estávamos seguras, derramei muitas lágrimas, como faço até hoje, de tempos em tempos. A dor por toda a nossa Nação, por nosso país, não passará até que a guerra seja concluída.
Sua família está na Ucrânia?
Eu me mudei para o Brasil com minha filha e minha irmã mais nova. Minha mãe estava em Mykolaiv, mas, há algumas semanas, organizamos a sua vinda para cá. Nosso pai ficou no leste da Ucrânia, em Luhansk. Ele está lá desde 2014 e não pode deixar a cidade. Neste lugar, os russos capturam os homens e os usam como escudos humanos contra o exército ucraniano e estamos muito preocupadas com ele.
Sente falta do seu país, da sua cidade, de seus familiares e amigos?
Não há um só dia que eu não sinta falta deles.
Na Ucrânia, você já trabalhava no setor portuário. Como você ingressou neste mercado e quais atividades desenvolvia?
Em Mykolaiv, mudei minha área de trabalho. Eu sempre fui uma pessoa comunicativa, então, para quem trabalha apenas com papéis não era suficiente. Comecei a carreira em uma corretora de commodities, a Prospex-Agro, como especialista executiva, depois me tornei corretora de commodities. Depois, adquiri experiência no comércio internacional de grãos e, em 2018, recebi uma oferta da empresa sul-coreana Posco International. A companhia comprou o terminal de grãos MMW, em Mykolaiv. O seu pessoal não tinha experiência nessa atividade e necessitava de um especialista. Foi um desafio para mim e valeu a pena. Havia muito trabalho. Foi necessário estruturar a empresa e o terminal para atender os clientes. Então, eu me tornei uma gerente comercial, responsável por atrair novos clientes, verificar a qualidade dos serviços prestados pelo terminal (laboratório, armazenagem e transbordo), atender conferências, desenvolver novos projetos, pesquisa de informações analíticas relacionadas ao mercado de grãos, etc.
Como surgiu a oportunidade de vir para o Brasil?
Em Mykolaiv, minha irmã Mariia se juntou aos escoteiros. Em 2016, o governo do Brasil e escoteiros organizaram uma competição entre crianças ucranianas que deixaram suas cidades devido à guerra em 2014. O prêmio era uma viagem de cerca de três semanas pelo Brasil. Minha irmã (então com 16 anos) ganhou esta competição. Ela passou um tempo maravilhoso no Brasil e nos tornamos amigos de alguns brasileiros e de pessoas da Embaixada. Então, em fevereiro, eles entraram em contato conosco e perguntaram se precisávamos de apoio. Na Polônia, tomamos a decisão de nos mudarmos para o Brasil. Com o apoio dos escoteiros e do Rotary Club, chegamos aqui. Quero ressaltar que foi a melhor decisão.
Você está gostando do Brasil e do nosso povo?
Eu amo o Brasil! O povo é o maior tesouro. É incrível como você pode ser gentil, aberto e amigável.
Em qual empresa você trabalha atualmente? Como conseguiu o emprego?
No momento, presto serviços de consultoria relacionados ao mercado de grãos na Ucrânia para a empresa brasileira Agrinvest Commodity. Antes do voo para Curitiba, enviei meu currículo para todos os brasileiros que eu conhecia. E, em poucos dias, a empresa me ligou e ofereceu um projeto muito interessante, que me ajuda a ter uma conexão segura com a Ucrânia.
Você quer voltar para o seu país um dia?
É meu sonho voltar para minha terra natal. Eu entendi claramente que a guerra não terminará em um, dois ou três meses. Ninguém pode dizer exatamente quando você poderá trazer sua filha de volta à Ucrânia sem que ela ouça alarme no ar… Assim, durante a minha primeira semana no Brasil, tomei a decisão de ficar pelo menos por dois anos e depois decidir o que fazer a seguir. Farei o possível para organizar uma vida normal e boa para a minha família. Se eu viver em constante expectativa, não serei capaz de viver a vida plenamente e ser o mais útil possível podendo fazer algo pelo meu país. Então, eu encontrei um emprego na minha linda área de grãos, planejando melhorar minha experiência portuária, minha filha foi para a escola e alugamos um apartamento novo. Tentei fazer doações todas as vezes para as forças ucranianas e para as necessidades humanitárias. E tenho certeza de que um dia abraçarei minha Ucrânia.